Esse artigo trata-se de uma provocação aos profissionais de psicologia , psicanalistas e interessados em psicanálise, a pensar um pouco além dos pilares fundamentais freudianos[1] no tocante à prática clínica com crianças, adolescentes, neurodivergentes, alcançando, inclusive, adultos com dificuldades no uso da linguagem. "Existe uma psicanálise que não seja a das crianças e dos adolescentes?", pergunta Zimerman, 2007. É uma proposta de se desvencilhar de idéias e métodos clínicos habituais, na tentativa de alcançar uma abordagem voltada para o tratamento de pessoas que muitas vezes são consideradas, de forma equivocada, inanalisáveis.
David E. Zimerman, no capítulo 39 do livro "Fundamentos Psicanalíticos", se apóia nos estudos mais recentes da neurociência e da psicanálise moderna para traçar um modo novo e “despretensioso”[2] de atuação na clínica. Uma providência “de saltar [...] para o interior da consciência mórbida buscando ver o mundo patológico com os olhos do próprio paciente”. [3] Sugere-nos que as demandas da contemporaneidade exigem um certo efeito suspensório das fundamentações teóricas do século XIX e XX, colocando o analista numa posição mais arriscada, contudo, mais criativa.
No tratamento psicanalítico de crianças é fundamental a preparação de um espaço apropriado para o acolhimento do infante. Até mesmo a pedagogia moderna adota estruturas criativas em salas de aula que permitem a ampliação do imaginário da criança. No setting clínico não pode ser diferente,
o espaço e a condição físicos, talvez não sejam mais do que uma metáfora do espaço mental e da maleabilidade somato-psíquica para a manutenção de um standard analítico “suficientemente bom”. O refúgio em condições de menor exigência – o setting analítico clássico – garantiria uma espécie de descanso ou aposentadoria das turbulências do front de batalha com as crianças, os adolescentes e, não esqueçamos, com os seus pais.[4]
Vejamos que, neste ponto, Zimerman trata o setting clássico como uma exigência à mente do paciente. Um divã ou duas poltronas frente a frente, exigem do paciente uma certa preparação emocional para aquele encontro supostamente desconfortável. Já um ambiente que torna tudo lúdico permite o alumbramento em algo que um dia se desejou, ainda que não se saiba o quê. Claro que aqui estamos tratando de crianças e adolescentes. Zimerman também aponta como esse sendo um dos desafios de analisar crianças, adolescentes, neurodivergentes, e a rejeição por parte da maioria dos psicanalistas por esse público específico.
Atribuímos à M. Klein como sendo a precursora do brincar na clínica. Foi ela quem deu novo sentido ao brincar no setting analítico, de modo a transpor a barreira da linguagem com um vocabulário pouco estruturado. Klein, “observando o mais óbvio, como convém a todas as grandes descobertas, percebeu que as crianças expressavam suas fantasias, seus desejos e experiências de um modo simbólico por meio de brinquedos e jogos”.[5] Winicott, por sua vez, chamou a atenção dos psicanalistas de modo que observassem mais o brincar em si, do que o conteúdo da brincadeira, visto que o brincar é a sublimação de um impulso, “uma ação sofisticada, representativa, simbólica”.[6]
Zimerman vai além do brincar. Pontua que o “signo é precursor do símbolo” e que não deve ser esquecido pelos psicanalistas. Designa para esta questão o que chamou de complexidade irredutível. Trata-se, portanto, de um sistema altamente complexo (aparelho psíquico), que não é abarcado somente por memórias e recalcamentos. Neste ponto, a Biologia pode auxiliar na compreensão desse sistema que é a mente humana. A formação da mente humana, a partir de um proto-sensoriamento inato, inicia-se com uma capacidade de “senso-percepção, seguida dos afetos e da conduta. A memória, o pensamento, a linguagem, a inteligência, o juízo crítico, etc., são todos desenvolvimentos posteriores, o que não significa menos importantes”. [7] O autor do livro, no seu longo caminho percorrido no capítulo 39 sobre a clínica com crianças, quer fazer com que olhemos um pouco para a importância da conduta, da ação, dentro da estrutura básica da mente, o que chamou de metapsicologia da ação. Isso porque a criança “comunica-se, brincando, ela diz, fazendo” [8]. Esse tipo de expressão acompanha alguns pacientes por toda a vida adulta.
Os signos não são capturáveis pela atenção flutuante do analista, cuja maior determinação fixa-se na análise daquilo que é simbolizado pela estrutura da linguagem. No entanto, não podemos deixar de considerá-los e passar a perceber a clínica como dinâmica, atentando-se à especificidade de cada sujeito. Estudos de metapsicologia sugerem uma categoria considerável de pacientes com transtornos de pensamento. Nestes casos prevalecem os delírios, as crenças limitantes, déficit de simbolização, incapacidade de representação de metáforas, pobreza na discriminação de fantasia X realidade, psicossomatização, adicções, pobreza no uso da linguagem e predominância do ato sobre a palavra.[9] Essas são características com excesso de referentes fáticos, que acabam por suplantar a capacidade de análise por meio da atenção flutuante voltada à linguagem e à simbolização do sujeito analisante. Nestes casos emerge um olhar sobre o ato; um olhar atento sobre o icônico, sobre esse fenômeno que prevalece durante todo o desenvolvimento de sujeitos empobrecidos de linguagem, sujeitos com problemas de conduta, borderlines, transtornos de gênero e psicoses. Abandona-se portanto a ideia pessimista de que para este tipo de sujeito não há análise possível, permitindo repensar o modelo que adotamos na clínica. Modelos, conceitos e teorias, “são iguais aos brinquedos, para utilizá-los deve-se poder quebrá-los, deve-se poder sujá-los, perder o respeito por eles.”[10]
Além dessas características de empobrecimento de linguagem, permitindo ao analista jogar com uma postura que rompe com o modelo tradicional de análise, é fundamental entender esse tipo de sujeito em sua singularidade constituída a partir da relação com a mãe nos seus primórdios. É porque só se é a partir do Outro (da mãe). A relação mãe-bebê é também o trabalho de inscrição quase determinante das características que carregamos no Eu. Dois rótulos possíveis ao nascituro, o nome e o Eu. Determinante, seria, talvez, não fosse a psicanálise, a metapsicologia ou os ‘mil-agres’ vindos de onde não alcançamos e que desinfetam os determinantes da subjetividade. Winnicott, foi além do conceito de estádio do espelho (Lacan), onde o sujeito incorpora o que o outro diz o que ele é na medida em que se vê reflexivo. Para Winnicott, “o primeiro lugar em que se olha a criança é o rosto materno. O rosto da mãe, então, é o primeiro espelho”.[11] Olhando-se então, a criança, vê que “o corpo da mãe não é um outro corpo, mas, sim, o seu próprio corpo”[12], onde sustenta a ideia sobre si mesmo por um eixo visual. Esse eixo visual é na verdade, um sentido que coloca o sujeito infante num lugar esquizo-paranóico porque passa da audição escura para um meio onde novas fontes de informação e processamento são iniciadas pela abertura de um novo sensor no corpo daquele bebê. Ele agora habita em um meio de ruídos e imagens, sendo a imagem a principal fonte de conhecer-se. Se a mãe não encontra-se amparada para lidar com os transtornos da maternagem, invalidando aquele bebê que já foi concebido pela subjetividade da mãe em um corpo imaginário, vive-se, então, um estilhaçamento da própria imagem no psiquismo infantil. Imagens refratadas da condição humana.
No subcapítulo Evocar e Esquecer, o autor vai trabalhar a passagem do tempo na formação da nossa subjetividade. Tão essencial como a capacidade de lembrar de algo esquecido, é a capacidade de esquecer de algo. Sem a capacidade de esquecimento, tudo o que envolveria situações de perdas, separação e ausência, seriam insuportáveis ao psiquismo. Essa passagem de tempo, para os neuróticos, é muito comum e simples a elaboração. Mas há um tipo de paciente que não suporta a passagem do tempo. Os sujeitos acometidos por um “defeito de fábrica”[sic], como a exemplo dos pacientes com TEA[13], não conseguem elaborar qualquer mudança que seja, porque implica uma passagem de tempo linear. Uma pequena transformação ou modificação no ambiente é sinônimo de rompimento, despedaçamento, desestruturação, desintegração. Esse tipo de paciente nos permite pensar um pouco fora da caixa do esquema proposto por Freud – e até dialeticamente repensado por ele próprio – onde prevalece o método de levantar as repressões, o recalcado e trazer à consciência o material oculto. Doravante, peguemos esses casos que confundem o olhar analítico para pensar junto com W. Baranger o campo analítico, onde suplanta-se o sujeito suposto saber e passamos a evidenciar os papéis de ambos: analista e analisante. Insights, interpretações, e até as resistências, passam a ser produto da dupla.[14] Trata-se sobretudo, “de algo que ultrapassa, de longe, a pura idéia de eliminarem-se defesas e ter contato com o reprimido”.[15] Sabe-se, contudo, que a defesa existe para proteger o ego e, expor o ego sem as suas couraças é a eliminação certeira de uma estrutura psíquica que só sobrevive porque é protegida. Não obstante, permite-se pensar como Baranger, num potencial criativo na transferência, no campo analítico, deixando um pouco de lado a norma clássica de atendimento e a metodologia já incorporada como habitual.
Se a mãe não encontra-se amparada para lidar com os transtornos da maternagem, invalidando aquele bebê que já foi concebido pela subjetividade da mãe em um corpo imaginário, vive-se, então, um estilhaçamento da própria imagem no psiquismo infantil. Imagens refratadas da condição humana.
Soma-se a tudo isso a transgeracionalidade. Fenômeno que tem um caráter quase inalcançável tanto pelo analista quanto pelo analisante, que mal conhece sua história e das gerações que o antecederam. A transgeracionalidade não pode ser descartada desse “campo analítico” pois é elemento fundamental pra poder pensar hábitos, costumes, genética, comportamentos, hereditariedade bio-psíquica. A transgeracionalidade está para os processos identificatórios, assim como a pulsão está para o desejo. Por seu caráter estruturante e alienante, e por não integrar a memória retornável, a questão é evitada pela psicanálise clássica. No entanto, seus efeitos são verdadeiros e inegáveis por teóricos como Faimberg, Baranger, etc, onde já propõe uma psicanálise que ultrapassa uma abordagem em cima de uma simples neurose de transferência. Analisemos, portanto, tudo aquilo que o paciente desconhece e que o antecede, visto que tudo é parte essencial do que ele é. Mitos familiares, criptas, fantasmas e até palavras proferidas às gerações futuras, imbuídas de carga emocional, se de algum modo é possível ter acesso, é elemento analisável. Faimberg chama esse processo – transmissão de história não vivida pelo paciente, ao mesmo tempo que é estruturante e vívido – de telescopagem geracional. “[...] complexos processos identificatórios que congelam o psiquismo em um sempre, que é um caráter do inconsciente, considerado atemporal.”[16] Vejamos que a atemporalidade aparece novamente como um fenômeno para o manejo clínico.
De tudo isso, podemos discriminar os fenômenos da atemporalidade, da transgeracionalidade, da cadeia de conteúdos inabarcáveis pelo campo analítico como sendo parte da trama constituinte do sujeito, da permissão de criar e inventar, fazer-desfazer, cortar e costurar, a abertura para o lúdico, um olhar atento sobre a relação mãe-bebê, etc. Não obstante, tudo o que escapa a possibilidade analítica clássica é parte integrante da topologia do Real.
[1] Investigações na área dos bebês e estudos transgeracionais sugerem uma clínica dinâmica e revolucionária para a psicanálise clássica.
[2] Despretensioso não no sentido de abandono do objetivo e desejo do psicanalista, mas despretensioso na abertura da possibilidade de repensar o que já existe – sem desconsiderar os esforços científicos, proposições testadas e comprovadamente acertadas por uma longa jornada clínica psicanalítica iniciadas por M. Klein, Ana Freud, Winnicot, etc –, permitindo um salto para mais junto do paciente, visto que a linguagem estruturada não é uma característica própria de crianças e adolescentes.
[3] (Zimerman, 2007)
[4] ________.
[5]________.
[6] ________.
[7] ________.
[8] ________.
[9] ________.
[10] Rodulfo apud Zimerman, 2007.
[11] Zimerman, 2007, p. 427.
[12] (Zimerman, 2007)
[13] Transtorno do Espectro Autista
[14] (Zimerman, 2007)
[15] (Zimerman, 2007, p. 430)
[16] (Zimerman, 2007)
REFERÊNCIAS
ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos [recurso eletrônico] : teoria, técnica e clínica : uma abordagem didática / David E. Zimerman. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2007.
Comentarios