Um dos grandes mistérios da humanidade, senão o maior, é sobre a origem da espécie humana. O homem da idade antiga, em diversas regiões do globo terrestre, tentou de diversas maneiras representar a sua própria origem como forma de significação e de existência. A pergunta ‘de onde viemos’ retumba até os nossos dias, atravessando milênios até a atualidade. É comum na sociedade e entre as religiões encontrarmos a narrativa de um mito sobre a criação da humanidade. Tais mitos se misturam e se confundem com um ou outro elemento, que se assemelham nas mais diversas culturas. Os mitos gregos também foram reproduzidos por gerações através da oralidade, sendo contados e repetidos durante séculos. Por volta dos séculos VIII - VI a.C, alguns poetas da idade antiga passaram a escrever e registrar os mitos de forma que não pudessem ser esquecidos, entre eles os principais são Homero, Hesíodo, Ésquilo e Eurípedes (Wilkinson, 2010).
É importante observar que até meados do século XVIII, a humanidade tinha como categoria ontológica, a respeito da sua própria origem, os mitos, as lendas, as histórias contadas, a reprodução oral da criação e de tudo o que existe. Antes do movimento iluminista, o homem utilizava-se da fé, intuição e suposição para categorizar o conhecimento das coisas. Fundamentava-se basicamente no determinismo de uma ou mais divindades que decidem por si só na organização do Nada em Cosmos, na criação de seres viventes e tudo o que existe. Foi com Alfred Russel Walace (1823 -1913), Lamark e Charles Darwin, que se consolidou no meio científico as idéias transformistas, de seleção natural, e evolução das espécies (Buican, 1990). A Origem das Espécies (1858) de Charles Darwin, marcou a história das ciências, colocando um ponto de inflexão na crença mitológica da criação da humanidade por meio da vontade de um deus. No entanto, isso não quer dizer que os mitos criacionistas sucumbiram. Ao revés, os mitos têm forte influência em nossos dias no tocante ao destino dos homens, na formação de um desejo de transcendência e, sobretudo, na representação da existência e significação do ser. Mesmo para o homem moderno, pulsa a necessidade de representar a sua própria origem pré-histórica. De construir a sua árvore genealógica a partir de uma única raiz. Dar nome ao primeiro homem, à primeira mulher. De onde surgiram seus antepassados longínquos para que proceda e dê sentido o seu afã de ser distinto de todos os outros seres, criado à imagem e semelhança de deus, e venha, por assim dizer, de forma inconsciente, “crio deus à minha imagem e semelhança”, na falta de representação para esse ente. A ‘lalangue’[1] como idioma criativo no estado de psicose para sustentar o sintoma.
O mito de Prometeu, pertencente à mitologia grega, é uma importante crônica que aborda a gênese da humanidade: o mito criacionista dos seres humanos. Para o gregos da idade antiga, a raça humana foi criada após outras três tentativas de criação, classificadas em três gerações como: raça de ouro, raça de prata e raça de bronze.
Cronos, um titã muito importante, filho de Gaia e Urano, liderava um grupo de titãs para governar o Cosmos. Foi Crono que criou a primeira raça da espécie humana, a Raça de Ouro. Esses seres viviam muitos anos, num mundo ideal de paz e harmonia, sem precisar trabalhar para sobreviverem. Quando faleciam, após muitos anos, sua morte era como um adormecer suave. No entanto, essa Raça de Ouro não se expandiu por toda a face da Terra, deixando a Terra despovoada. Essa raça foi muito representada em pinturas pelos artistas da Renascença. A fim de preencher o vazio da Terra, os deuses do Olimpo, filhos de Cronos, criaram a Raça de Prata. Era uma raça que demorava a amadurecer. Viviam muitos anos, mas demoravam para atingir a maturidade. Essa raça de seres humanos se mostrou bronca e obtusa. Além disso, se recusavam a fazer sacrifícios para os deuses do Olimpo. Essa situação deixou Zeus, filho de Cronos, muito irritado, fazendo com que ele os exilasse na Morada dos Mortos (Wilkinson, 2010). Para compensar, Zeus criou outros seres a partir do barro. Esses seres usavam armaduras de bronze e ferramentas do mesmo metal (Wilkinson, 2010), mas também eram agressivos e aniquilaram-se em guerras. Por último surgiu a raça humana atual. Geralmente se atribui a Prometeu a criação da raça humana, por quem tinha muito zelo e cuidado. Prometeu ensinou aos humanos muitas coisas, mas sobretudo ensinou aos humanos a não dar a primazia do sacrifício aos deuses. Esse é um detalhe muito importante do ponto de vista da psicanálise, pois toca na descentralidade dos deuses, fomentando o narcisismo, independência e individualidade dos seres humanos, visto que a maior parte da carne de um animal agora era consumida e apreciada pelos seres criados. Ou seja, o Grande Outro pode ser enganado e desdenhado da sua sede de sacrifícios.
Certa vez, o povo matou um touro, mas não chegava a um consenso sobre que parte dele ofertaria aos deuses. O astuto Prometeu envolveu a carne no couro do animal e os ossos em sua gordura. Zeus escolheu os ossos recobertos por gordura mas ficou tão irado com a trapaça que se recusou a ceder o fogo aos humanos. (Wilkinson, 2010, p.26)
A questão do fogo é central no mito, visto que busca explicar o início civilização. Muitos historiadores indicam que o domínio do fogo é o marco civilizatório da raça humana, pois é a partir do controle do fogo que os hominídeos puderam fabricar cerâmicas, utilizar o fogo para iluminar e se protegerem dos perigos da noite, aquecerem-se do frio e mudar a dieta a partir do cozimento dos alimentos. O fogo também representava o domínio. Somente os deuses dominavam o fogo. Quando os homens passam a ter domínio sobre o fogo, ele se eleva a uma condição de Deus, passando a ter domínio sobre as outras criaturas.
O titã Prometeu além de trapacear e enganar Zeus, afeiçoado aos humanos rouba o fogo do monte Olimpo e leva até eles. Zeus fica indignado mais uma vez, e descobrindo a sua segunda trapaça, agora resolve castigar Prometeu eternamente. Zeus então acorrenta Prometeu num rochedo entre a Terra e o Caos, e determina que uma águia lhe bicasse o fígado todos os dias para tormenta do titã, até que outro ser se oferecesse em seu lugar. O fígado se regenerava e no dia seguinte a águia lhe dilacerava novamente, aumentando a tortura. Certo dia, Hércules passando pelo rochedo mata a águia com uma de suas flechas, livrando pra sempre Prometeu de sua tortura.
O fígado e seu poder de regeneração representava para os antigos gregos o órgão responsável pelo centro das emoções. Freud, a partir da teoria psicanalítica, desenvolve o conceito de inconsciente para mostrar que o que nos move e diz sobre nós está oculto e incognoscível. O inconsciente, para a psicanálise, é central no desenvolvimento das emoções. É uma abstração subjetiva que encerra a nossa existência, capacidade de amar e odiar, criar e projetar os afetos, e até de estabelecer as condições singularmente ambientais para as faculdades e cognições.
Em síntese, com um pouco de abstração podemos pensar nesse mito como uma história que busca explicar a individualidade, razão, independência do homem como autor e implicador de sua própria existência. Com a tomada do fogo em suas próprias mãos, o homem passa a depender de mais ninguém para domínio sobre as demais criaturas existentes. É também a partir do domínio do fogo que damos causa e conhecimento das ciências e da técnica, visto que manipular o fogo transforma os estados da matéria e cria novos elementos de importância para as condições existenciais (calor, defesa, alimentação e bioquímica). Essa independência dos deuses -- de decidir por si só o que comer, o que sacrificar, se for sacrificar, o que fazer e como ser, --, implica num sofrimento iminente e intermitente, na quebra do determinismo dos deuses. Um sofrimento na subjetividade e na singularidade (fígado), impossível de ser contido pois a decisão de sermos e determos as rédeas de nossa própria vida está, de alguma maneira, acorrentada. E existir é muito esquisito, expressou certa vez Adélia Prado.
*Esse texto expressa somente a opinião do autor.
[1] "lalangue" ou "alingua" é a linguagem estruturada do inconsciente, conforme postulou Jackes Lacan.
REFERÊNCIAS
WILKINSON, Philip. Mitos & Lendas: origens e significados. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
BUICAN, Denis. Darwin e o darwinismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
Comments